Cem anos do Maria Vitória: a história de resistência do primeiro teatro do Parque Mayer [vídeo] - Postal do Algarve

2022-07-23 02:01:27 By : Ms. Leon lin

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A 1 de julho de 1922, “Lua Nova” estreava no primeiro teatro do Parque Mayer. Ao longo de 100 anos, a revista lutou por manter um lugar neste espaço cultural. Apenas o Maria Vitória foi resistindo. Uma reportagem multimédia sobre a história deste palco.

Folha de música da revista “Lua Nova”, a primeira do Maria Vitória 1922 Créditos: “Lua Nova”, MNT / MNT 67710 / Desconhecido – MNTD-DGPC

A luz amarela destaca-se no céu escuro em noites de espetáculo: Maria Vitória. O edifício cor de rosa que se ergue, humildemente, no Parque Mayer já mostra os sinais do tempo. Foi o primeiro dos teatros a ser inaugurado e foi o único que manteve as portas abertas durante os 100 anos que passaram. Ganhou o título de “Catedral da Revista” por apresentar as mais requintadas revistas, um género que continua a subir a este palco, com as tradicionais críticas e caricaturas ao regime e às figuras da atualidade. Num ano de festa e com o Capitólio e o Variedades com cara renovada, lembramos a história de resistência e a luta do Maria Vitória e olhamos para um futuro incerto.

Foi a 1 de julho de 1922 que o Maria Vitória estreou as tábuas do seu palco. A peça Lua Nova, uma revista da autoria de Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos, subia a cena para fazer uma retrospetiva, em jeito de piada, dos principais acontecimentos do ano anterior. Tinha, nos seus quadros, uma homenagem à fadista e atriz Maria Vitória, uma jovem de voz forte que cantou, entre outros, o famoso fado do “31”. A sua morte precoce – com apenas 26 anos – travou o seu sucesso eminente. Maria Vitória tornou-se uma lenda e o seu nome foi imortalizado na fachada deste novo teatro.

“O teatro Maria Vitória é o mais antigo do Parque Mayer. Só não foi inaugurado a 15 de junho porque estava em acabamentos – embora fosse um teatro feito para feira, não um teatro como é hoje em cimento. Era um teatro provisório, mas o provisório tornou-se eterno”, começa a contar Hélder Freire Costa, empresário de teatro há 47 anos e atualmente o responsável pelas produções no Teatro Maria Vitória.

Folha de música da revista “Rataplan”, 1925 Créditos: “Nota Falsa”, MNT / MNT 67718 / Desconhecido – MNTD-DGPC

O Parque Mayer surge como uma tentativa de revitalizar as tradicionais feiras itinerantes que, no início do século XX, eram pontos de entretenimento para os lisboetas – desde a conhecida Feira de Agosto, no parque Eduardo VII, à Feira de Santos, que foi proibida em 1919 devido à instabilidade noturna. As barracas de comes e bebes, o pimpampum, o tiro ao alvo e as exibições de fenómenos e aberrações – como o Gigante Português, o Comilão de Almada, a Mulher Elétrica – eram alguns dos entretenimentos que se podiam encontrar nestas feiras. E os teatros também.

O Maria Vitória “vai dar a primeira configuração” ao lado teatral deste novo parque de diversões, explica Paula Gomes Magalhães, investigadora do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. “Há revistas bastante célebres e o próprio género ganha uma dimensão com o lugar que ocupa no Parque Mayer e traz outras pessoas. De alguma forma, podemos dizer que ajuda à revitalização do Parque Mayer enquanto espaço de diversão e polo cultural frequentado por todas as classes sociais.”

No palco do Maria Vitória era também possível assistir a comédias musicadas, operetas – como “Quebra-Bilhas” (1930) e as “Lavadeiras” (1933) – ou à proclamação de poemas. Mas foram as revistas “Foot-ball” e “Rataplan” que ficaram na memória coletiva. A história de Artur Alves dos Reis, um burlão que falsificava notas de 500 escudos quase impercetíveis aos olhos dos especialistas de contrafação, dava o mote ao espetáculo e fazia soar o tambor da desilusão de um povo enganando: “Rataplan-plan-plan”.

Contar a história do primeiro teatro do Parque Mayer, é contar também a história de um género teatral muito português, que teve altos e baixos. É contar a história das casas de teatro que abriram e fecharam portas ao longo dos anos e dos atores que deram vida às mais ilustres personagens. Os que pisaram os palcos do Maria Vitória, Variedades (inaugurado em 1926), Capitólio (1931) e ABC (1956) deixaram uma marca profunda no Parque Mayer, em toda a capital e na cultura do país. À medida que passava o tempo, o parque crescia, fervilhava e tornava-se mágico.

Figurino e fotografia da atriz Maria Cristina na revista “Milho Rei”, 1935 Créditos: “Menina dos Beijos-Milho Rei”, MNT / MNT 91139 / Desconhecido – MNTD-DGPC

A história de Portugal pode ser lida nos quadros da revista. Quando, a 28 de maio de 1926, o golpe de Estado liderado pelo general Gomes da Costa proclama o início da segunda República Portuguesa – mais conhecida como Estado Novo -, a revista “Ás de Espadas” cantou o movimento militar. A população estava habituada a revoluções constantes desde a implantação da República, em 1910, e desvalorizou a importância de mais um movimento militar. O impacto só se sentiu mais tarde, quando a revista perdeu a voz.

A revista, que já tinha sido afetada pela lei da rolha durante a monarquia, volta a enfrentar os cortes do lápis azul. Um fado que dura 48 anos, até ao 25 de Abril de 1975. “A censura vai, de alguma maneira, fazer diminuir o peso da atualidade e daquilo que é o texto na revista”, explica Paula Gomes Magalhães. No entanto, este género já vinha a conquistar públicos desde 1851, data em que estreou a primeira revista no Teatro do Ginásio. “A revista já era o género de eleição por parte dos portugueses. Porque, na sua génese, é algo muito ligado à realidade, ao dia-a-dia, ao quotidiano”.

Beatriz Costa e coristas na revista “Pim! Pam! Pum!”, 1932 Créditos: “Pim! Pam! Pum!”, MNT / MNT 216708 / Novais, Horácio – MNTD-DGPC

Os movimentos que marcavam a sociedade dos loucos anos 20, também se viam na revista: começavam a sentir-se as influências do foxtrot e do charleston e o aparecimento de pintores e ilustradores modernistas trazem também uma nova faceta. Os espetáculos foram-se “tornando extremamente visuais em termos de opulência, com os coristas, com os figurinos, com bastante ostentação”. Se o texto não podia ser dito, o espetáculo apostava nas cores, nas plumas, nos figurinos, nas músicas, no glamour.

“A Rambóia” (1928), produzida pela companhia de teatro de Eugénio Salvador, foi uma das revistas que levou a palco os melhores e mais modernos cenários, associados a um figurino de alta costura. “Pim! Pam! Pum!” (1932) – onde Maria das Neves e Beatriz Costa cantam o famoso fado “Menina do Cochicho”; “Milho Rei” (1935) ou “O Cartaz de Lisboa” (1937) são alguns dos mais marcantes espetáculos. Mas os cortes do lápis azul vão fazendo estragos.

Fotografia da fadista Amália Rodrigues, 1986 Créditos: “Amália Rodrigues”, MNT / MNT 150726 / Ana Esquível – MNTD-DGPC

Um evidente exemplo da censura aconteceu na revista “O Banzé”, em 1939, a primeira em cena depois da declaração de guerra à Alemanha que daria início à II Guerra Mundial. A disputa entre a “Taberna Inglesa”, o “Hotel França” e a “Casa Alemã” pela anexação de um armazém levou um grande corte por cima e nunca chegou a subir a palco. A revista “A Vitória” (1945) trazia a promessa de mais liberdade num estado ditatorial que já se estendia há perto de duas décadas. Mas o desejo não se concretizou.

Além dos títulos que ainda hoje vivem na memória coletiva, também vários atores se destacaram nos teatros do Parque Mayer: de Beatriz Costa a Irene Silva, Maria Matos, Luísa Santanela, Irene Isidro ou Laura Alves, de Camilo de Oliveira a Henrique Santana, Eugénio Salvado, José Viana, Raul Solnado, Nicolau Breyner, Ribeirinho ou Humberto Madeira, e tantos outros. Amália Rodrigues também se estreou no Maria Vitória, em 1940, na revista “Ora Vai Tu”, onde conheceu o compositor Frederico Valério.

Para o ator José Raposo, que mais tarde veio a pisar os palcos do Maria Vitória e também a produzir espetáculos em parceria com Hélder Freire Costa, o Parque Mayer tinha “atores, encenadores, cenógrafos, figurinistas, músicos, compositores, bailarinos, coreógrafos que pertenciam à nata da cultura portuguesa, a todos os níveis”. E deixa críticas a quem desvaloriza a revista e a apelida de “teatro ligeiro” ou popular.

“O teatro popular pode ser um teatro político”, sublinha Paula Gomes Magalhães. “A conotação da palavra popular fez desmerecer [o género] e hoje sabemos que faz desmerecer muito, infelizmente. Porque originariamente não era essa a conotação. Temos, tivemos, teremos sempre muito teatro popular de cariz político muito forte”.

Atriz Ivone Silva na revista “O Bombo da Festa”, 1976 Créditos: “Ivone Silva-O Bombo da Festa”, MNT / MNT 162825 / J. Marques – MNTD-DGPC

Na década de 1960, Giuseppe Bastos juntou-se a Vasco Morgado numa parceria de sucesso que se manteve até ao final da vida de ambos. Começaram a produzir juntos no Variedades, tendo passado depois para o Maria Vitória – cuja concessão foi ganha por Giuseppe Bastos, depois da empresa anterior ter falido. Os ganhos das revistas produzidas em conjunto permitiram ao empresário Giuseppe Bastos recuperar os prejuízos que tinha tido anteriormente no Capitólio. Hélder Freire Costa que, na altura, assumia o papel de secretário de Giuseppe Bastos, lembra bem essa época: “Curiosamente a sociedade correu muito bem, ganharam muito dinheiro, continuaram a querer ser sócios.”

“Um empresário de teatro é um lutador e está no teatro porque gosta muito dos artistas com quem trabalha e gosta da atividade. Há sempre aquela mania das meninas. É por paixão. O senhor Bastos gostava mesmo muito de teatro e tinha muitos amigos no teatro. Os artistas adoravam trabalhar com ele.”

O processo de produção de uma revista era complexo – e moroso: os autores do espetáculo tinham de enviar os seus textos para a Comissão da Censura que analisava a escrita e cortava palavras, falas ou até mesmo números inteiros. Os empresários iam buscar os guiões, apresentavam aditamentos e correções, num vai e vem que não tinha fim à vista. O selo branco a dizer “aprovada” tinha de marcar todas as páginas do guião.

“Chegava a uma altura em que a empresa já não aguentava mais o prejuízo e tinha de estrear de qualquer maneira”, recorda o empresário. “Aceitávamos os cortes todos e combinava-se com os artistas. O Nicolau Breyner tinha a simpatia deles porque era uma figura pública com certo nível cultural. Era muito simpático e dava-lhes a volta. E havia a Ivone Silva que decorava o texto dela e de toda a companhia. Chegava ao palco e despejava aquilo [muito rápido]. Dizia ‘é a minha forma de representar’, [depois] enganava-se no texto, espirrava, dizia que se perdia no texto com os nervos, que já não se lembrava do texto. E toureava-os, eles acabavam por deixar passar.”

A atriz Io Appolloni lembra-se de uma piada que cortaram no seu guião por fazer referência a Sá Carneiro. “Aqui a censura política não era brincadeira nenhuma. Um exemplo: a Ivone Silva – grande atriz, minha nossa senhora – vem a censura e corta, corta, corta, corta. Fazíamos o espetáculo para a censura, eles cortavam. No dia seguinte, para o público, voltava a dizer tudo. Toma! Era uma censura mas a gente não ligava”, conta, lembrando que os seus papéis eram mais “para divertir o público”.

A atriz de origem italiana – mas que garante ser “mais portuguesa” do que quem cá vive – estreou-se no Maria Vitória em 1965, na revista “Sopa de Mel”. Quando recebeu o convite do empresário Eduardo Damas, trabalhava como cantora no Casino de Gibraltar, em Espanha. Sentada na poltrona com o seu nome, a atriz confessa que a homenagem prestada pelo teatro “foi uma surpresa agradável”. “Deram-me a honra de pôr aqui o meu nome porque, de facto, tinha muita comunicação com o público, o público gostava de mim da mesma forma que eu gosto do público”. Na plateia estão também homenagens de Vasco Morgado, Giuseppe Bastos, Vasco Santana, entre muitos outros atores e amigos do Maria Vitória.

Io Appolloni mostra fotografias antigas Créditos: Filipa Traqueia

“Este teatro merece estar no auge. Porque o que tem acontecido neste teatro durante anos: milagres, com atores fabulosos, com tantas gargalhadas. Lembro-me quando fiz com o Camilo de Oliveira [um quadro] que se chamava ‘Alfandega’. Eu era a estrangeira que queria passar a fronteira e ele obrigava-me a tirar o casaco de peles, depois o vestido, depois a combinação e ficava em soutien. Ele dava conta que eu tinha um brilhante no umbigo – ele era genial como ator, só visto – e combinou comigo: ‘quando eu descobrir que tens um brilhante no umbigo, tu agarras em mim e ficas danada por eu ter descoberto isso’. E depois ele dizia ‘agita, agita antes de usar’. Era uma gargalhada.”

Os trocadilhos faziam parte dos textos. Alguns mais óbvios para tentar ludibriar os censores, outros mais discretos que só na representação se percebiam. “O período da ditadura foi de uma grande riqueza de textos porque os autores tinham a grande habilidade de dizer as piores coisas para enganar a censura. A censura por vezes não percebia, por vezes deixava passar. Em geral não deixava”, lembra Nuno Nazareth Fernandes, músico, compositor e autor de revista.

Além dos truques para enganar a PIDE, no Maria Vitória havia um “número mágico”: o cinco. O camarote cinco estava sempre reservado para receber os censores ou outros representantes do Estado Novo que, para o ocuparem, “tinham de apresentar o cartão na entrada ao fiscal”, conta Hélder Freire Costa. Ora, se este camarim estivesse ocupado, os arrumadores do público avisavam os atores e o texto era dito conforme os cortes da censura. “Quem era prejudicado? O público que estava e que vinha assistir àquelas piadas e, muitas vezes, os atores não as diziam porque estava presentes [os censores]. Quando se iam embora, avisavam e continuavam a fazer o espetáculo como deve ser.”

A resistência chamava o público, que ouvia nas entrelinhas o que a censura não queria deixar passar. Gonçalo Antunes de Oliveira, investigador no Instituto de Etnomusicologia da Universidade de Lisboa, reconhece o “papel fundamental” da revista “na luta e resistência contra a censura”, mas garante que “a revista era uma prevaricação consentida”. “Eles não podiam proibir a revista por um lado porque era uma forma de cultura expressiva, já completamente entrosada no país desde meados do século XIX, por outro lado eles também percebiam o que o povo gostava.”

Cartaz da revista “Até Parece Mentira!”, a primeira depois do 25 de Abril, 1974 Créditos: Programa da revista “Até Parece Mentira!”, MNT / MNT 62888 / Desconhecido – MNTD-DGPC

Na madrugada de 25 de abril de 1974, quando tocava na Rádio Renascença a música “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, faltava apenas meia hora para terminar a sessão do Maria Vitória. Era o único teatro do Parque Mayer que tinha espetáculo a decorrer nessa noite, segundo afirma Luíz Francisco Rebello, no livro História do Teatro de Revista em Portugal. A revista “Ver, Ouvir e Calar”, escrita por Aníbal Nazaré, Henrique Santana e Henrique Parreirão, passou a chamar-se “Ver, Ouvir e Falar”, contando com o texto original – antes dos cortes da censura.

“As revistas que estavam em cena no momento do 25 de Abril foram imediatamente remodeladas. Coisas que a censura tinha cortado foram permitidas”, afirma Nuno Nazareth Fernandes. Se no tempo em que não se podia dizer tudo “havia a preocupação de cumplicidade com o público, de fazer entender as coisas”, com a liberdade essa arte “perdeu-se um bocado porque toda a gente pode dizer tudo”. “Até Parece Mentira” – uma revista não recomendada para menores de 18 anos – foi a primeira revista do Maria Vitória em tempo de liberdade e a segunda do Parque Mayer, subindo a cena dois dias após a estreia do ABC.

José Raposo lembra que, durante o período do Estado Novo, a revista era “acima de tudo um espetáculo de crítica social e política ao regime de Salazar, ao regime fascista”, mas reconhece que, com o 25 de Abril, “as críticas políticas e sociais começaram a fazer-se de uma forma muito mais aberta e livre, o que modificou o tipo de escrita”. No entanto, o ator que se estreou na década de 1980, no teatro Adoque, e pisou o palco do Maria Vitória pela primeira vez em 1994, recusa as alegações de que a revista tenha deixado de fazer sentido.

“Eu não concordo quando dizem que a partir daí não fazia sentido haver este tipo de espetáculo. É mentira. Este tipo de espetáculo é riquíssimo e, acima de tudo, é contrapoder. Há sempre razão para existir contrapoder porque no poder há sempre falhas”, argumenta, insistindo que “a revista é uma forma maravilhosa de criticar.

Ribeirinho e Vera Mónica // Créditos: Abel Dias

Foi neste período de instabilidade que Nuno Nazareth Fernandes, conhecido pelos galardões conquistados no Festival da Canção, se estreou no Parque Mayer. Quando passou à disponibilidade e regressou da Guiné pensava que seria engenheiro mecânico, mas a instabilidade levou-o por outros caminhos e foi convidado para compor músicas e fados para a revista. Com o tempo passou a escrever também quadros. “A revista apenas tinha de exprimir o vox populis, o que o público dizia e não dizia. Houve uma fase de grandes revistas”, explica, admitindo que o “excesso de liberdade de expressão que houve na altura” fez com que a revista caísse “ao nível da habilidade dos textos”, passando a “usar-se muito o palavrão”.

“Há livros e autores que justificam que no pós-25 de Abril, quando a revista deixou de estar censurada e pôde dizer tudo, talvez o público se tenha afastado um pouco deste género. Deixou de ser necessário o contraditório, já se podia dizer tudo na rua e talvez não fosse necessário ir ao teatro para ouvir essas coisas”, diz Flávio Gil, ator, encenador e autor no Maria Vitória. “Para atrair o público, tentou-se de tudo, recorrendo até ao palavrão aberto e a uma linguagem mais brejeira. Se calhar numa primeira fase resultou, mas, mais tarde, acabou por afastar o público que não queria só ver isso.”

Mas a Revolução de Abril não acabou apenas com o regime ditatorial, mudou também o paradigma cultural em Portugal. “Por coincidência, os empresários teatrais tiveram um shift completo num espaço de três ou quatro anos. Entre 1975 e 1978 mudou o regime do país, desapareceu Giuseppe Bastos, morreu Vasco Morgado, herdou o Vasco Morgado Júnior, herdou Hélder Freire Costa. O país também mudou muito: de lembrar a adesão à União Europeia – na CEE -, a primeira novela na televisão foi a Gabriela, Cravo e Canela em 1977. Começamos a ter conteúdos televisivos que concorriam ainda mais com uma revista já debitada com a história de já não ser precisa a censura.”

Uma revolta que coincidiu com a morte dos dois empresários que faziam a gestão do Maria Vitória e de outros teatros na grande Lisboa: Giuseppe Bastos em 1975 e Vasco Morgado em 1978. Hélder Freire Costa e Vasco Morgado Júnior, respetivamente, foram os sucessores dos falecidos empresários e tomaram em mão os espaços de teatro. O atual produtor do Maria Vitória conta como a companhia se colocou do seu lado para que assumisse a empresa após a morte de Giuseppe Bastos.

Os quatro teatros do Parque Mayer – e o novo teatro Adoque no Martim Moniz – iam procurando um caminho para chegar aos públicos. As revistas refletiam as políticas dos empresários que geriam cada teatro, um caminho que Nuno Nazareth Fernandes considera ter “enfraquecido” este género teatral. O Maria Vitória acabava por ser identificado com uma política mais de direita, perto do partido PPD/PSD – muito devido à amizade entre Henrique Santana e Sá Carneiro.

Em 1986, a tragédia abateu-se sobre o Maria Vitória e obrigou ao fechar da cortina. No dia 10 de maio, um incêndio destruiu o teatro. “Estava a começar a jantar, [quando] liga-me a Manecas do restaurante que era ao pé do Variedades: ‘Costa vem já para o parque, o teu teatro está a arder’. Eu largo tudo, saio a correr”, lembra Hélder Freire Costa, emocionando-se ao recordar o fatídico dia.

Incêndio no Teatro Maria Vitória // Créditos: ARQ. A CAPITAL/IP

O barulho das sirenes ouvia-se em toda a cidade de Lisboa e, por isso, o empresário tentava tapar os ouvidos, “não queria ouvir nada”. Ao entrar no Parque Mayer, Henrique Santana – com quem estava chateado por discórdias associadas ao teatro – abraçou-o. A emoção levou a melhor e Hélder Freire Costa teve de ser assistido pelos médicos.

“Acho que me deram duas injeções. Acho que ganhei às injeções, porque eles pensaram que eu ia dormir para casa, eu fingi que estava a dormir e vim imediatamente. Diziam que o teatro não tinha ardido assim muito, não me deixaram ver. Mas, pelo cheiro a queimado, eu não acreditei. Trouxe uma lanterna de casa e quando entrei aqui… Mais valia não ter vindo.”

Incêndio no Teatro Maria Vitória // Créditos: ARQ. A CAPITAL/IP

O incêndio teve origem numa obra que estava a ser feita para colocar novos projetores, inspirados pelo que se fazia em Londres. A montagem foi feita com soldadura de eletrogéneo, que “fica sempre incandescente” e acabou por pegar fogo à alcatifa do teatro.

Outros vieram também para apoiar a companhia de teatro do Maria Vitória. Desde pessoas ligadas ao setor até ao próprio presidente da Câmara de Lisboa, que na altura era Nuno Krus Abecasis. José Raposo temeu que este fosse o fim do teatro: “Não deixa de ser um teatro a arder e a extinguir-se, claro que vim assistir a esta desgraça e senti muito isso. Não sabemos como é que volta, porque, normalmente, em Portugal, aproveitam e em vez de se construir, destrói-se. Mas aqui dá muito nas vistas, em termos políticos.”

O Maria Vitória renasceu das cinzas, tal como a mítica fénix que na entrada do teatro presta homenagem a esse período negro da sua história. A peça de teatro que a companhia estava a preparar – que era também da autoria de Nuno Nazareth Fernandes – foi exibida no teatro Maria Matos. “Andámos preocupados em não parar o espetáculo. Fomos daqui para o Maria Matos e fizemos uma revista. Essa era a preocupação do Hélder Freire Costa”, conta o compositor.

“Isto é Maria Vitória” foi a primeira de duas revistas apresentadas neste palco cedido pela Câmara Municipal. Depois, em parceria com Vasco Morgado Júnior, Hélder Freire Costa coproduziu outros espetáculos no Variedades – porque o Capitólio lhe trazia más memórias dos prejuízos de Giuseppe Bastos. O Maria Vitória só voltaria a abrir portas em 1990 com a revista “Vitória! Vitória!”.

Camilo de Oliveira e Nicolau Breyner // Créditos: Abel Dias

O Parque Mayer ansiava por uma nova vida e, enquanto o Maria Vitória estava em reconstrução, o Variedades tornou-se o palco que levou ao estrelato enormes nomes da representação em Portugal: Marina Mota, Carlos Cunha, Fernando Mendes foram alguns dos protagonistas da “Prova dos Novos”. Vinham de Ovni até Lisboa e conquistaram rapidamente o coração do público. Mais nomes se foram juntando a este grupo: Maria João Abreu, José Raposo, Joaquim Monchique, João Baião, Noémia Costa, Vera Mónica.

Foi também essa geração que nascia por entre os teatros do Parque Mayer que, mais tarde, investiram na revista, encenando e produzindo espetáculos de sucesso durante a década de 1990 e de 2000. José Raposo e Maria João Abreu, por exemplo, juntaram-se na produtora Toca dos Raposos e coproduziram uma série de revistas com Hélder Freire Costa. Decidiram fazê-lo pelo amor a este género teatral. Enquanto lembra esse momento, José Raposo admite ter “pena” de não fazer revista há muito tempo.

Ribeirinho // Créditos: Abel Dias

“Eu e a Maria João produzimos uma revista em 1998 que percorreu o país. Depois o Hélder Freire Costa propôs-nos fazer uma coprodução. Pegamos em muita coisa que havia dessa minirrevista, que tinha sido escrita e encenada pelo Mário Rainho, e pusemo-la no Maria Vitória com mais atores e mais textos. Chamava-se ‘Ó Troilaré, Ó Troilará’.”

Numa das revistas produzidas pela parceria havia um burro – o Aníbal – que, na estreia, deixou um presente a José Raposo. “Se calhar com os nervos, ao entrar comigo o burro e fez logo ali uma borrada monumental. Eu ia buscar uma vassoura e fiz o número enquanto ia limpando. Aproveitei para improvisar e ia brincando com o burro.” Na gíria teatral, “merda” é o que dá sorte ao espetáculo e, como lembra o ator, essa revista foi um sucesso. E outros se seguiram.

“Eu tenho trabalhado com equipas muito jovens, que têm categoria, já o provaram perante a população”, garante o empresário do Maria Vitória. Flávio Gil, Paulo Vasco ou Diogo Costa são alguns dos nomes apontados por Hélder Freire Costa para manterem o teatro vivo, mesmo depois da sua morte. “São pessoas de total confiança, pessoas sérias, responsáveis e que têm objetivos de futuro.”

O Parque Mayer foi vendido à Bragaparques em 1999. Começava um novo milénio e avizinhava-se uma longa luta judicial entre a empresa a Câmara Municipal de Lisboa e a empresa. Em 2005, os terrenos do Parque Mayer foram permutado com os da Feira Popular: o terreno em Entrecampos passou para a empresa e o Parque Mayer para a posse da Câmara. Um novo projeto para reabilitar o espaço foi apresentado pelo então autarca, Pedro Santana Lopes.

“Ele propôs uma reestruturação do Parque Mayer através do projeto do arquiteto Frank Gerry. Toda a gente disse mal e era só uma questão política”, lembra José Raposo. “Vetaram isso na altura e era um projeto que, pelo menos, tinha preservado o parque com quatro teatros e com o casino. Toda a gente sabe que o casino é um local de jogo, um local lúdico, mas é certo que ia trazer para aqui um público diferente que era ‘obrigado’ a ver os quatro teatros e os restaurantes. Daria uma vida a isto que nunca mais houve.”

Nuno Nazareth Fernandes também critica a falta de “coragem política e empresarial” para criar um parque “que não dormisse”, que “durante o dia tivesse escritórios com restaurantes e à noite teatros, clubes de jazz”. A verdade é que o projeto de Santana Lopes nunca saiu do papel e a luta legal pelo terreno do Parque Mayer prejudicou quem resistia e mantinha os teatros vivos. O tribunal reverteu a permuta e António Costa, entretanto eleito, apresentou um novo projeto para este espaço cultural. O ABC vai abaixo, o Capitólio e o Variedades ficam em ruínas.

Bilheteira do Teatro Maria Vitória // Crédito: Filipa Traqueia

A dor de ver o “deserto” em que se tornou um dos maiores espaços culturais de Lisboa ainda se mantém: “Eu lembro-me de sair daqui às três da manhã com o Xico [Francisco] Nicholson e dizer: ‘Oh Xico, olha para isto’ e ele disse ‘Não estou a ver nada…’ ‘Pois, não estás a ver nada. Já nem há gatos vadios’”.

“Foi uma altura um bocado triste”, lembra Paulo Vasco. “A Bragaparques começou a pensar nisto como sendo uma coisa económica. Foi na altura que se começou a pensar num parque de estacionamento, foi quando se começaram a degradar os teatros, inclusivamente queriam que as pessoas que tinham teatros fosse à vida deles. Tudo foi feito para que o parque começasse a degradar-se.”

O ator, que está no Maria Vitória desde 1992, lembra que houve um tempo em que os camiões do lixo foram proibidos de entrar para recolher os resíduos e de outra em que não podiam entrar carros no Parque Mayer – nem mesmo ambulâncias. “Como é que conseguíamos salvaguardar isso? Com providências cautelares que ganhávamos sempre.”

“Os empresários, uns já envelhecidos, começaram a não ter forças porque não havia hipóteses de sobrevivência. O público começou a não vir porque cheirava mal”. Os restaurantes e cafés, as barraquinhas típicas dos tirinhos e até os produtores dos teatros, começaram a abandonar o Parque Mayer. O Capitólio fechou em 1990, o Variedades resistiu até 2008. O ABC fechou portas em 1997 e foi demolido anos mais tarde, em 2015.

Para Hélder Freire Costa, sair nunca foi uma opção. Bateu o pé e recusou-se a abandonar o Maria Vitória sem que lhe desse “garantidamente” um novo teatro no parque, algo que nunca recebeu. “Acabaram muitas companhias teatrais, acabaram muitos teatros que foram demolidos e eu fiquei com este brinquedo nas mãos. Felizmente tive muita gente sempre ao meu lado e o Maria Vitória sobreviveu até hoje, com muitas dificuldades.”

“Há muitas coisas que, por ser o único teatro, se perdeu”, lamenta Paulo Vasco. “Quando havia outros teatros a funcionar, nós fazíamos, por exemplo, o assalto aos teatros em que cada companhia ia a outro teatro meter-se no meio das peças deles. E o convívio: aqui somos uma família e, naquele tempo, a família era alargada porque tínhamos a família do Maria Vitória, do ABC e do Variedades.” As partidas que se faziam nos camarins e os jantares depois das sessões dos vários teatros tornaram-se história.

Hélder Freire Costa ao lado da frisa em homenagem a Giuseppe Bastos // Créditos: Filipa Traqueia

Io Appolloni não tem dúvidas quando escolhe as palavras para descrever o atual parque: “Eu tenho dois desgostos na vida: não ter netos e o Parque Mayer como está. Porque naquela altura estava o Maria Vitória, o Variedades, o Capitólio, o ABC e oito restaurantes – oito restaurantes. Isto fervilhava quando era fim de semana nem te passa pela cabeça o que era.” A atriz refere-se ao Parque Mayer como a “Broadway portuguesa”. “Com é que se pode deitar abaixo um teatro [o ABC] para daí fazer um parque de estacionamento? Isto é uma violência. Isto é uma vergonha. Eu não sei quem fez isto. Há uma grande falta de respeito pelos artistas.”

As dificuldades não ficaram por aí: a crise financeira que trouxe ao país a troika teve um bruto impacto no teatro. “Nós pressentíamos que vinha uma crise e o senhor [Hélder Freire] Costa baixou o preço dos bilhetes. E nessa mesma revista o Governo aumentou o IVA para 13%, que era um balúrdio. Foi de facto muito difícil atravessarmos essa crise económica. Inclusivamente foi na altura em que estavam a acontecer obras em tudo o que era sítio do Parque Mayer. Chegámos a entrar por tábuas”, lembra Paulo Vasco.

Para o empresário do Maria Vitória foi uma das “piores dificuldades financeira” que se lembra. “Eu que tantas vezes dizia que o teatro faz falta para a cultura como o pão para a boca, senti que era uma grandessíssima mentira. As pessoas a terem de pagar renda da casa, os estudos dos filhos, etc., queriam lá saber do teatro para alguma coisa”

E quando a crise parecia estar a passar e se avizinhava um futuro risonho, a pandemia de covid-19 voltou a atirar o teatro ao chão. A revista “Pare, Escute… e Ria” estava em cena quando o país entrou em confinamento e foram obrigados a interromper as atuações. Em setembro, a companhia voltou a colocar o espetáculo em cena com um elenco renovado e novos quadros. Poucos meses depois, o país voltou ao confinamento.

“Em março [de 2020], já estávamos com bilhetes comprados e salas esgotadas até maio. Tivemos de suspender o espetáculo. Imagine o prejuízo que não foi para a empresa”, lembra Paulo Vasco.

Uma companhia de teatro não são apenas os atores que estão em palco, lembra Hélder Freire Costa. “Se isto dá para o torto, é muita gente a trabalhar connosco. Numa atividade normal, pelo menos 60 pessoas estão cá entre técnicos, bilheteiros, auxiliares de sala, artistas e balé. E depois há os indiretos – os autores – que ganham direitos de autor. Há muita gente envolvida num espetáculo, as pessoas não têm disso a dimensão.”

André David Reis prepara-se para subir ao palco de “Vamos ao Parque”, 2022 // Créditos: Filipa Traqueia

Os atores começam a chegar pelas oito e meia da noite. Uns preparam-se nos bastidores para mais uma sessão, outros vão ao palco para testar os microfones. André David Reis, de 27 anos, é o mais novo do elenco de “Vamos ao Parque”, uma revista que, mesmo com os constrangimentos da pandemia, ultrapassou as 200 representações. Começou a fazer este género teatral na Academia de Santo Amaro. Enquanto se maquilha e veste para a primeira das várias personagens que vai representar, o jovem passa pelos camarins dos colegas e oferece um bocado de chocolate.

“O Maria Vitória tem um peso muito grande para mim porque foi o primeiro teatro a que fui quando era pequeno. Fui pelas mãos dos meus avós, que me trouxeram ao Parque Mayer. Ainda assisti ao parque desconstruído, os terrenos ao abandono por completo, só o Maria Vitória resistia”, lembra, partilhando a tristeza que sentiu ao entrar no espaço degradado.

Bailaria nos bastidores do Maria Vitória, “Vamos ao Parque”, 2022 // Créditos: Filipa Traqueia

Ana Lopes Gomes, de 32 anos, estreia-se na revista, no Parque Mayer e no Maria Vitória. Era um sonho que tinha desde os 14 anos. Conta que foi nestes camarins que decidiu ser atriz. A história que emana das paredes da “Catedral da Revista” não é ignorada por nenhum dos atores. Nem as imagens dos atores que decoram a sala de espetáculos deixa esquecer. A cantora e atriz Dora considera que “o Maria Vitória é uma lenda por si só” e elogia Hélder Freire Costa pela resistência “contra todas as intempéries”, produzindo “peças grandiosas”.

As brincadeiras nos bastidores vão desaparecendo à medida que o altifalante alerta que faltam apenas alguns minutos para o subir da cortina. As pancadas de Mollier dão início a mais uma sessão, numa temporada a caminho do fim. A peça “Vamos ao Parque” terminou a 28 de maio e a nova revista – que irá incluir a celebração do centenário – deverá estrear em setembro.

A azáfama do despe e veste faz com que não haja momentos de sossego nos bastidores. Há sempre alguém a correr para se preparar para o próximo número, seguindo as listas de quadros afixadas na parede. Uma assistente de palco espera pelo fim do quadro para ajudar André David Reis a vestir-se. O jovem ator sai de cena ainda a cantarolar o fado que está a ser representado por Dora. A troca de personagens demora apenas alguns segundos.

Dora prepara-se para o início do espetáculo // Créditos: Filipa Traqueia

Do outro lado do palco, o cinto prejudica a preparação de Miguel Dias, que tem de se vestir para a caricatura do cantor Toy que aparece no quadro seguinte. O ator começa a ficar irritado com o atraso, mas o público nem se apercebe e, no momento certo, está em palco para fazer rir com as críticas astutas ao Governo. A pandemia é um dos principais temas que marca os quadros e nem a Justiça escapa.

“A revista continua a ter o mesmo impacto”, diz Paulo Vasco, referindo-se à crítica social que caracteriza este género teatral. “A prova disso é que eu tinha um número nesta revista que era sobre o [juiz] Ivo Rosa, que nós chamamos ‘Vivo Rosa’. As pessoas identificavam tão bem aquilo que o número era gargalhada do princípio ao fim.” O ator lembra ainda que “já houve ministros e secretários de Estado da Cultura que caíram por não cumprirem promessas em relação ao Parque Mayer.

Flávio Gil reconhece que a “responsabilidade da denúncia” é uma “herança pesada” da revista, mas, por outro lado, é também o que “define” este género teatral. “Tudo faz sentido quando for bom, honesto e de qualidade. O Maria Vitória gosta de pautar por apresentar a revista à portuguesa, na sua forma completa e plena”, uma “grande responsabilidade” que assume tanto para “honrar o género” como para não “defraudar as pessoas”.

Enquanto autor, Flávio Gil reconhece que o presente traz novos desafios à revista: um deles é rapidez com que atualmente circula a informação faz com que se “esgotem os assuntos demasiado depressa”. “Pegar em coisas que toda a gente sabe, mas sob uma abordagem que possa divertir” é o novo “desafio” para quem escreve os quadros. Nuno Nazareth Fernandes acredita que a revista terá de se “remodelar” para se adaptar a uma nova sociedade.

No exterior, o edifício do Maria Vitória já começa a acusar a idade que tem. No interior, as cadeiras apertadas, a falta de coxia central ou os pequenos camarins são também alguns dos problemas que este edifício antigo vai arrastando ao longo dos anos. Se as tábuas são história, a remodelação é um passo óbvio e necessário para que este teatro possa continuar a contá-la. A questão é “como?”

Ana Lopes Gomes não vê grande futuro para o teatro Maria Vitória. “O Parque Mayer está todo a ser remodelado, o Capitólio já está remodelado, pelo que vi pelas janelas – porque ainda não assisti a nada – pareceu-me um pavilhão polidesportivo que nem plateia tem”, comenta. As críticas à reconstrução do Capitólio, inaugurado em 2016, e ao Variedades, atualmente em obras, são constantes. A preocupação sobre o futuro do Maria Vitória também.

“Eu acho que fizeram tudo mal. Está tudo mal feito”, critica José Raposo. “Estes teatros, onde se faziam grandes espetáculos, têm de ter características que o permitam a nível técnico – seja a nível da teia, do palco, do subpalco… O que fizeram no Capitólio já não dá para fazer espetáculos com esta grandiosidade, com este glamour. Para mim estão a destruir o que existia e tenho receio que façam o mesmo ao Maria Vitória.”

Revista “Vamos ao Parque”, 2022 // Créditos: Filipa Traqueia

Nuno Nazareth Fernandes considera “doloroso” ver o parque como está e, por isso, evita lá ir. “Quando se faz o máximo possível e depois ver as coisas com uma certa limitação, é um bocado doloroso”. Defende que “era preciso construir [o Maria Vitória] de raiz, com todas as condições de modernidade para se poder fazer um espetáculo. Mas isso também depende do enquadramento do Parque Mayer. Atirou-se tanta coisa abaixo.”

“Hélder Freire Costa faz o que pode e o que não pode para continuar a ter este teatro. Mas este teatro não tem uma sala de espetáculos moderna, não está ao nível do que se faz em espetáculo hoje em dia. Mas não há esse tipo de apoios”, acrescenta, sublinhando a necessidade da revista ser “completamente repensada” para poder concorrer como outros meios, como a televisão.

A SIC Notícias enviou à Câmara Municipal de Lisboa um conjunto de perguntas sobre os projetos para remodelação do teatro Maria Vitória, na sequência das obras feitas aos outros dois teatros. Questionou também a permanência da companhia de Hélder Freire Costa no Parque Mayer. No entanto, a autarquia não respondeu às questões enviadas. Disse apenas que “a Câmara Municipal de Lisboa olha com a máxima atenção para os muitos desafios relacionadas com o Parque Mayer”. Considera ser “um espaço da cidade que é fundamental recuperar para a dinâmica, vida e alegria de outros tempos” e um “local de eleição da nossa Lisboa, de recordações inesquecíveis para tantas gerações”. “Qualquer solução definitiva terá de garantir que a Cultura estará no centro do projeto com a presença das suas múltiplas vertentes como o teatro, a arte, a educação e a música”, acrescenta a autarquia.

Cidália Moreira na revista “Vamos ao Parque”, 2022 // Créditos: Filipa Traqueia

O presidente da junta de freguesia de Santo António, Vasco Morgado – neto e filho dos empresários teatrais e um homem que cresceu no Parque Mayer – explica que as obras de reconstrução realizadas aos dois teatros são “casuísticas” e critica a diminuição do número de lugares que foi feito tanto no Capitólio como no Variedades. “Ainda não me conseguiram explicar – porque sou teimoso – como é que de 1.200 lugares se põe um teatro com 368? E outro, que está a ser agora recuperado, passa de 1.000 lugares para 300? Basta fazer as contas: terão de pôr os bilhetes para o teatro a 150 euros cada um”, critica, sublinhando que “Lisboa precisa urgentemente de salas de médio porte para trazer produções internacionais”.

A junta de freguesia apresentou um projeto de requalificação do Parque Mayer à Câmara de Lisboa, onde propunha a criação de um polo de educação cultural, com a edificação dos conservatórios de teatro e dança, com polos do Museu Nacional do Teatro e da Dança e do Museu do Brinquedo. O projeto “foi apresentado ainda na altura do antigo presidente da Câmara”, mas foi “encostado”, conta o autarca. “Na altura o urbanismo não achou que tivesse interesse – vá lá saber Deus porquê. Não queriam cá conservatórios, era preferível ter hotéis”, critica.

Vasco Morgado anuncia que o mesmo projeto está agora a ser adaptado pelo executivo de Carlos Moedas e que estão “a trabalhar para tentar conseguir” fazer do Parque Mayer “uma aldeia cultural de exportação de talento”. Sobre o Maria Vitória, o autarca admite que este teatro “precisa de obras de recuperação” e que, por ser o primeiro teatro do parque “terá de se manter”.

Dora e Miguel Dias na revista “Vamos ao Parque”, 2022 // Créditos: Filipa Traqueia

Pela informação avançada por Hélder Freire Costa à SIC Notícias, “o Maria Vitória é um teatro para abater”. “Segundo o que se prevê nas reuniões que tive na altura em que se discutiu o futuro do parque, o Maria Vitória é um teatro para abater. Aqui ficará um teatro de maiores dimensões com melhores condições.” Mas o empresário partilha da preocupação dos atores: “Do que eu tenho visto na recuperação do Capitólio e do Variedades – que está para abrir – não vejo nada disso. Vejo teatros de dimensões muito reduzidas, sem condições de conforto para o público. O Maria Vitória, sendo um teatro muito velhinho, ainda tem melhores condições que esses que abriram recentemente.”

Sobre a permanência da companhia no Parque Mayer, Hélder Freire Costa faz questão de sublinhar uma promessa que lhe foi feita por António Costa, na altura presidente da Câmara de Lisboa: “O Dr. António Costa fez um discurso na Casa do Artista, no dia mundial do teatro, onde disse que a companhia de teatro do Maria Vitória, pelos relevantes serviços prestados à cidade, terá sempre o seu lugar aqui, aconteça o que acontecer.” A passagem para o Variedades enquanto o Maria Vitória está em obras é uma das possibilidade em cima da mesa, mas não há garantias

Flávio Gil espera que a reconstrução do teatro não seja atrasada por sucessivos concursos e falências das empresas e que os três teatros do Parque Mayer possam voltar a estar em atividade. Sem a “Catedral da Revista” em funcionamento, o ator e encenador teme que possa haver um período em que não haja este género de espetáculos em cena no Parque Mayer. “Isso não tem de ser sinónimo de que a revista acabe. Mas acho que é um grande e preocupante passo nessa direção”, alerta.

“O futuro do Maria Vitória, enquanto cá estivermos, penso que está garantido. Embora seja um teatro com 100 anos, que precisa de obras”, garante Paulo Vasco. “Este teatro é uma pérola porque é dos poucos teatros em Lisboa – tirando o Politeama, claro – que tem o sistema de teia para se fazer qualquer género de teatro”. Io Appolloni também não tem dúvidas: “O Maria Vitória existirá sempre. Disso tenho a certeza absoluta. Não vão fazer como o ABC, que deitaram abaixo.”

Quadro “Aeroporto”, integrado na revista “Tudo na Lua”, 1959 Créditos: “Aeroporto-Tudo na Lua”, MNT / MNT 94392 / Sampayo Teixeira – MNTD-DGPC

A história da revista anda de mão dada com a do Maria Vitória e dos restantes teatros que, durante o século XX, emanavam cultura para a população de Lisboa – do Variedades ao Capitólio, do Monumental ao Avenida, do Laura Alves ao Villaret, entre tantos outros. Desde a sua estreia, a revista sempre foi um dos géneros mais apreciado pelos públicos, mas a sua longevidade pode estar cada vez mais ameaçada pela falta de apoios e financiamento.

Para evitar que caia no esquecimento, a junta de freguesia de Santo António propôs à Câmara Municipal de Lisboa que este género teatral tão típico de Portugal – que deu ao país o hino nacional, a imagem do Zé Povinho e alguns dos mais famosos e ilustres fados – seja considerado Património Imaterial da UNESCO.

Cena da revista “Festa é Festa”, 1955 Créditos: “Revista “Festa é Festa””, MNT / MNT 77180 / Fernando Pedroso Pinto – MNTD-DGPC

“O que fizemos foi apresentar a nossa intenção na Assembleia Municipal, que foi aprovada. Agora a câmara está, com o seu gabinete de advogados, a preparar as candidaturas, a convidar as equipas para entregar o documento na UNESCO”, explica Vasco Morgado.

O objetivo é dar uma nova vida à revista com este reconhecimento internacional, tal como aconteceu com o fado e com o canto alentejano. “Temos de dar importância às coisas, se não elas definham e morrem. E conseguirmos fazer com que a revista passe a Património Imaterial da Humanidade, passa a ter a importância devida que sempre teve”.

José Raposo olha para o género lírico-dramático espanhol, a Zarzuela, para encontrar um exemplo do que o Governo deveria fazer em Portugal: criar uma Companhia Nacional de Teatro de Revista. Lembra os movimentos liderados por Raul Solnado que acabaram por não surtir efeitos. “Não houve esse apoio em relação à revista. A classe política desdenhou completamente este tipo de espetáculos.” E remata: “isto é um espetáculo que tem a ver connosco, com o povo português.”

Repórteres de imagem: Euclides Semedo; João Venda; Gonçalo Soares; Fernando Almeida e Roger Nicolau

Edição de Imagem: Ana Isabel Pinto