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2022-04-19 09:39:57 By : Mr. FUJI DONG

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, liderança, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte, viagens, cinema e felicidade. Com opinião, para o leitor refletir, concordar e discordar.

Nasceu no Rio. Jornalista desde 1974. Mestrado em Londres sobre Ética na imprensa. Foi repórter, editora, diretora de redação, correspondente em Londres e Paris. Escreve sobre o ser humano e suas contradições. E-mail: ruth.aquino@oglobo.com.br

Marli Dutra feriu testa, nariz, queixo e gengiva, está com joelheira para andar e em dores, depois de ser atropelada de bicicleta por uma criança no calçadão. Aquilo está uma zona. | Ruth de Aquino

Até rimou. O verão do pancadão...nos pedestres. É um verão ansioso, o primeiro ao ar livre desde 2019. O calçadão de domingo na praia do Rio está uma zona. Não é “espaço democrático”, é zona mesmo. Bicicletas, patins, patinetes motorizados, triciclos, skates, monociclos elétricos disputam o mesmo espaço com humanos de todas as idades e limitações.

Não pode dar certo. E o prefeito Eduardo Paes, tão passionalmente carioca, precisa colocar um mínimo de ordem ali, separar veículos de pessoas. Se nada for feito, vítimas processarão em peso a prefeitura por negligência. No domingo, ao caminhar pela orla em êxtase, diante da beleza obscena de mar e montanhas, percebi logo que alguém seria atropelado. Era questão de tempo. Minutos.

Ciclistas reagem rabugentos quando um pedestre atravessa a ciclovia sem olhar. Ciclistas são militantes contra carros e ônibus. Ciclistas são ativistas. Tão ciosos de seus direitos. Mas invadem a via reservada a famílias, carrinhos de bebês e vovós. E saem tirando fino, numa velocidade de triathlon. Outros atletas sobre rodas e rodinhas realizam manobras incríveis, saltam, derrapam, se exibem. Skates voam. Lindo. E perigoso. 

Não pode dar certo. Ou se divide esse espaço ampliado do calçadão dominical com barreiras metálicas – de um lado veículos, do outro os seres humanos – ou continuaremos a ter acidentes nefastos para os mais frágeis. Em especial crianças e idosos. Não somos equipados com setinha, freio, espelho retrovisor. Vi inúmeros “quase-acidentes”, com ciclista gritando “ôôô” para velhinho sair da frente. “Irresponsáveis!”, gritou um senhor de cabelos brancos, que por pouco não foi atingido.

Até que vi uma senhora ser lançada no asfalto, de cara pra baixo. Marli Dutra caminhava bem junto ao meio-fio, com medo de ser abalroada. Não adiantou. Foi atropelada por uma criança de bicicleta, por trás. O menino, com camisa do campeão da série B, ficou sem graça. O pai e um amigo ergueram, com dificuldade, a vítima. Fotografei, saía sangue do rosto dela.

“Vai cuidar de sua vida”, gritou para mim o pai da criança. E a Marli para ele: “Olha, você precisa ficar perto de seu filho se ele estiver aprendendo a andar de bicicleta”. E o pai: “Quer o quê? Que eu coloque meu filho numa jaula?” “Não”, respondeu Marli. “Quero que você o eduque direito, seu filho não tem culpa”. “Por que a senhora não anda lá na calçada junto à areia?”

Surge aí a pior face do carioca, o que não quer nem saber. Para o pai, a culpa era de Marli, que por fatalidade estava no caminho do filhinho. Conversei com ela para acalmar, pedi que tirasse a máscara para ver as escoriações. Ela estava triste: “Olha só, ele já se mandou. Podia ter se oferecido para ir comigo na farmácia ou pagar a lente quebrada dos meus óculos”. Falta delicadeza no trato. 

Marli, 74, viúva, sem filhos, está com joelheira e muita dor. Passou a semana em radiografias. Vai ao dentista porque a queda afetou um implante. “Eu voltava para casa pensando ‘como essa caminhada me faz bem’, sou carioquíssima, amo o Rio, eu ia pelo cantinho, normalmente tenho reflexo mas me pegou por trás”.

Marli por sorte não fraturou nada, mas outra senhora, Vanda Tavares, empurrada por uma bicicleta na calçada, tropeçou e quebrou três costelas. Horas em exames. Tomografia com contraste. Soro com morfina. Vacina antitetânica. 

Vamos disciplinar o que dá para disciplinar, em vez de só bater bumbo para essa carioquice sem noção. No quesito educação, o Rio não é nada lindo.